Tuesday, July 13, 2021

A GEOGRAFIA, O TEMPO E AS VERDADES

 

Toda a mudança assusta! Nicolau Maquiavel, o autor de “O Príncipe” e “A Arte da Guerra” (dell'arte della guerra) escreveu que a “mudança criava sempre muitos opositores. Porém, uma vez estabelecida, aqueles que mais ferozmente se tinham oposto a ela, seriam os que dela mais beneficiariam”.

A década da Revolução Francesa, que destrona um regime opressor e absolutista, rapidamente se desenvolve na tomada da Bastilha, na formulação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e Cidadão e, ao som dos gritos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, se constata como essa década iniciada em 1789 se auto-destruiu com os seus diversos processos evolutivos ajudados pela invenção do médico Joseph Ignace Guillotin. Essa década, onde o Absolutismo deu lugar à República, veria tantas mortes tornadas inúteis com a emergência de um certo Napoleão Bonaparte, vindo do Consulado.
É bom termos em conta que a chamada velha Europa foi o continente de onde partiram movimentos a que hoje ainda chamamos, eurocêntricamente, de "descobrimentos", que levavam consigo a semente do colonialismo, do imperialismo e do esclavagismo.

O período da Revolução Francesa e as diversas ilacções que dela se podem extraír – e serão várias e diversas – é paradigmático da contradição humana e, sobretudo, dos incontroláveis movimentos de massas. 
A Europa foi, assim, o berço do expansionismo marítimo de que resultaram conquistas perpetradas por nós, portugueses, seguidos pouco depois, pelo holandeses e ingleses. Foi da Europa que nasceu a maior nação imperialista, localizada na América do Norte, futuramente integrada no conceito de Ocidente, e edificada sobre o genocídio de cem milhões de ameríndios. É preciso reconhecer que a chegada dos portugueses, a partir de 1500, às terras de Vera Cruz,  portadores de escravos africanos e de virus que liquidaram muitos índios e alimentaram de ouro o reino. É preciso ter em conta a matança Azteca de Hérnan Cortés a partir de 1509, sem contar com as guerras intestinas europeias, além de duas guerras mundiais. 

Nunca nenhum continente foi mais colonialista, esclavagista, belicista do que a Europa, alimentada por um imcompreensível sentimento de superioridade civilizacional. 


Assim, num tempo em que a Europa se tem como uma União Democrática, tenho-me questionado sobre o significado desse termo. 


Poder do povo? Porque há eleições e liberdade de expressão? E que dizer dessa União onde o Brexit foi um rombo e onde uma Alemanha e a França ditam as regras do jogo? Praticamente ninguém diz nada sobre o jogo. As eleições que tanto prezamos no momento histórico, porque se acredita que legitimam a vontade das massas, deram origem a uma classe que nomeamos de políticos, alguns dos quais, poucos ainda, já se encontram atrás das grades, no pós sufrágio popular. A democracia gera sobretudo políticos, mas pouquíssimos são estadistas.

E tudo isto porque, como sempre na história da humanidade, vivemos a e da circunstância. Mais do que isso, somos a circunstância, com o préstito de crenças que arrastamos connosco consoante a geografia em que existimos.


Vivemos uma actualidade onde cabem a globalização, a realidade virtual, comunicações internacionais instantâneas, informação também imediata, pagamentos digitais, cirurgias robotizadas, inteligência artificial, jornais digitais, comércio digital e, naturalmente, redes sociais onde, para nos inscrevermos, damos parte da nossa informação pessoal. Mas, dizem, existem regras de preservação de dados pessoais. Dizem... 


Há já muito tempo que qualquer piloto de uma aeronave comercial programa o computador de bordo para o trajecto que quer e apenas se preocupa com o arranque e, se quiser, com a aterragem. 

Enquanto os automóveis híbridos e eléctricos se vão afirmando na medida da capacidade de compra das populações, e os automóveis sem condutor já estão na sua fase experimental, ameaçando em breve tornar realidade a ficção científica.


É assim que vem a propósito a análise de uma interventora brasileira sobre o terrível drama da existência de câmaras de reconhecimento facial na China que, sem as características da democracia Ocidental – já dita e reescrita – parte do princípio geográfico-circunstancial da diabolização de todas as práticas que não cabem na formatação do seu e nosso pensamento, mesmo quando este sofre da enorme contradição que todas as diabolizações e geo-etnocentrismos acarretam.


E assim temos que, um país como a China, que inventou a pólvora, a bússola, o papel, a seda, o sismógrafo, a besta, o papagaio de papel para usos militares, que sempre foi reino e mais tarde império, usufruindo do encorajamento actual todo poderoso na prossecução de avanços tecnológicos, recorre à tecnologia do reconhecimento facial para poder assegurar o controle de 1.400 milhões de habitantes de uma maioria Han e 56 minorias étnicas. 

Numa realidade chinesa, eis que a apresentadora fala nos valores da liberdade, do direito à privacidade, e todos os valores ocidentais actuais – que já foram entregues de mão beijada a todos os poderes virtuais e reais com o telemóvel, o cartão de crédito, e todas as outras formas tecnológicas em uso – como quem diz que comer com pauzinhos é a maior selvajaria num tempo em que o Ocidente comia à dentada ou com uma simples faca sobre uma fatia de pão.


A senhora em questão talvez se esqueça das milhares de favelas onde a sobrevivência se faz pelo tráfico de droga e pela matança violenta.


A senhora talvez se esqueça que é errado avaliar outras culturas pelos parâmetros da sua cultura. 

De facto, nem toda a gente conhece a maravilhosa MPB, mas esta não é única. Nada é único hoje em dia. Tudo é subjectivo.


Por isso, quando os automóveis que nos conduzirão sozinhos tiverem de recorrer ao reconhecimento visual para não serem roubados, como hoje já há telemóveis que usam o reconhecimento facial para se desbloquearem, talvez possamos ver o alcance não apenas do reconhecimento facial, mas quiçá de sistemas políticos que se não enquadram na formatação “democrática” ocidental, mas que demonstram níveis de crescimento tão elevados que ridicularizam o Ocidente, o mesmo que envenenou com ópio e pilhou a China há menos de 200 anos. 

Escrevi uma vez que não se podia analisar as filosofias chinesas segundo óculos ocidentais. Para mim o cogito ergo sum constitui a mesma redundância que o ditado chinês qualquer um sabe que a mãe é uma mulher

Mas é apenas para mim, que sei que não sei. Por outras palavras, o enraízamento e cristalização das convicções tornam-se etnocêntricas de um e de outro lado.


Vejamos: a privacidade não existe na China com os mesmos princípios e valores que existem no Ocidente. Na China, até a bacia de água para lavar o rosto é partilhada há milénios, que a água não era corrente. Avós, filhos, netos e bisnetos coabitam sob o mesmo tecto. Esse o conceito de família, isto é, quem casa não quer casa. 


Vista interior de um tulou mostrando a contiguidade dos lares
e o sentido de privacidade.

Os Tulou 土樓 de Fujien, construídos pelos hakka 客家, são o resultado da construção de casas-fortalezas feitas de terra (daí o nome) onde habitam, colectivamente, dezenas de famílias, tudo sem a tal privacidade tão cara ao ocidente. Dir-se-ia uma transversalidade seguramente étnica, em que cada criança é cuidada por todos aqueles dos compartimentos-casas vizinhos. Talvez seja a invenção chinesa daquilo que mais tarde o Ocidente chamaria de cooperativas, no pós Revolução Industrial. 


vários Tulou protegem-se mutuamente

Não se trata de promiscuidade. Confúcio não formulou nenhum ensinamento promíscuo. Antes criou a teia mais importante que sempre suportou a China: os laços familiares, tão precisos que, ao se ouvir nomear um parente, sabe-se o grau de parentesco, e se é do lado materno ou paterno. Nos templos de todas as aldeias existem livros onde se pode ver a genealogia de cada família, séculos a fio.

Foi esta densificação e, porque não, estratificação cultural que ocasionou sempre uma desconfiança em relação ao Ocidente, isto é, um sentimento de auto-suficiência de tal modo, que o tempo, bem mais lento que o ocidental, parou.
E assim, perante o anacronismo de um império manchu, se deu a invasão Inglesa da I Guerra do Ópio, espadas e canhões obsoletos contra arsenais poderosos e, depois da segunda Guerra do Ópio, a suprema humilhação.


Ninguém que não tenha estado na China, não fale mandarim ou algum dos inúmeros dialectos, não tenha experienciado o modo de vida chinês pode avaliar, objectivamente, o que a esmagadora maioria dos 1.400 e muitos milhões pensa sobre regimes autoritários, depois de milhares de anos de impérios autocratas. Existiram rebeliões no passado, tudo para mudar o mandato celestial 天命 para que o mesmo céu 天 concedesse a outro, a sua bênção, para assim poder exercer o renovado e transferido poder de Filho do dito Céu.


Pertenço a dois mundos confluindo em Macau. Português nascido nas faldas do Celeste Império, já Mao Zedong tinha conquistado o poder, dei por mim a falar o português que sou e escrevo, o cantonense que falo e o inglês que fui apurando, e o francês aprendido no Liceu. Esta a minha circunstância, e o legado que transporto, que é ser eu mesmo, sem, naturalmente, me vergar perante nada nem ninguém.


O problema da curvatura é que ela requer uma sujeição, ou mais que uma, conforme o vento.

E para que a curvatura se confirme, à maneira dos presos que vigiavam presos em Peniche ou em Dachau, era preciso recorrer simultaneamente à ameaça para baixo e à subserviência para cima, aquela obediência que os chineses apelidam de “canina”, dos cães que abanam a cauda para cima.


O Ocidente dito democrático, possui a vantagem da liberdade de expressão. Pergunto-me porém, se a maioria dos chineses tradicionais, isto é, sem os tiques inculcados pelos britânicos do ópio, por exemplo, se exprime naturalmente com liberdade. Penso que não, que não sentem necessidade de se revelarem. Seria uma estupidez deixar saber o recôndito do seu pensamento.
Não é por acaso que existe o carácter 忍 que significa suportar, aguentar, e que se compõe de uma lâmina (rèn) 刃 sobre o coração 心 (Xin), característica cujos cânones só foram quebrados por raros ministros que arrancavam os olhos 沒有眼睛看 (não tenho olhos para ver isto) e os atiravam aos pés dos seus imperadores antes de se suicidarem em protesto pelos caminhos das dinastias que serviam. Suportar significa também temperança no que se diz, por sabedoria. Suportar, aguentar, foi o que os chineses fizeram durante as ocupações estrangeiras que impediam a entrada a cães e a estrangeiros.


Há muito caminho a percorrer até que a tolerância seja mútua, e se assista à queda dos pedestais dos que, a ele subindo, se armam em defensores de uma ocidental liberdade, em nome de uma verdade grandiloquente e universal. 

Apetece fazer a inevitável pergunta: mas, algum de nós é verdadeiramente livre?

Às vezes, para que o respeito mútuo se alcance, parece ser necessário um cataclismo, se até lá não tivermos a capacidade de nos mirarmos ao espelho da verdade.


Até lá, vamos tendo as verdades em blocos, como se o gelo glaciar já não estivesse a derreter-se.


No comments:

Post a Comment

A DIMINUIÇÃO DO QI, O EMPOBRECIMENTO DA LINGUAGEM E A RUÍNA DO PENSAMENTO.

        Christophe Clavé “O efeito Flynn, baptizado em homenagem ao seu criador, prevaleceu até à década de 1960. O seu princípio é que o Qu...