Sunday, July 14, 2019

O LADO DE LADO NENHUM



As cidades são lugares de fascínio, de lides com o tempo, organismos vivos, legados, lugares construídos pelos que nos precederam em diferentes passados, respeitados e homenageados pela nossa vivência, engenho e vontade de os continuar.
As cidades só o são quando a sua autenticidade é respeitada e orgulhosamente vivida, fruída.
De outro modo, não é cidade, mas um amontoado urbano onde o vegetar se substitui à fruição.
Este lugar, em que estou e sou, embala-me o sentimento, e me faz, também aqui, sentir-me vivo de aqui estar.
Aqui diz-se “bom dia, como está, com sua licença, por favor e obrigado”.
Num café gerido por uma velha viúva curvada, vestida de negro, e duas filhas, abeirou-se da minha mesa um rapaz, talvez de doze anos, o tronco desnudo, que, com o maior respeito, em sentido, a voz tímida mas digna, pediu:
“peço desculpa de interromper, mas será que o senhor me poderia dar um cigarro?” e nessas palavras, a um tempo sedutoras e respeitosas, se resume o precoce reconhecimento do Outro, mesmo que ao pedido tenha respondido "não fumo".
Aqui por perto há uma lojinha fabulosa, porque encarna tudo quanto se tornou anacrónico. Primeiro, porque existe há mais de sessenta anos. Depois, porque continua a ostentar cautelas, lotarias forrando as paredes, namorando as raspadinhas de hoje, e jornais e revistas, tudo exalando a tempo, às intermináveis gerações de alunos comprando cadernos e esferográficas, e ali, sempre ali, o senhor Pereira, lento porque esse é o seu compasso,  me diz “até que...”
Logo ao lado, antes das sete da manhã, à esquina, abre o café pastelaria, o dono a dar o exemplo, a menina do balcão segue-lhe os passos e o empregado de óculos grossos por baixo de uma calvície precoce termina a procissão. 
Entro de seguida, e um sorriso acolhe-me, e breve me chega à mesa, o tampo de mármore, o “abatanado” cheio e a tosta mista, e eu a adaptar-me lentamente aos ponteiros deste tempo.
Isto tudo é gente que trabalha, com um porte que transpira uma subtil dignidade, igual à das pedras de onde parecem provir.
Uma nostalgia indizível apodera-se de mim porque me recorda o tempo em que, de onde venho e aonde pertenço sobretudo, havia triciclos e riquexós, cigarras, e as árvores não eram serradas, abatidas. Eram pujantes acácias rubras ocultando cigarras cantando, alternando com o auto-china1 de um qualquer rádio, e todos nos dávamos, numa entrega independente da língua. Éramos todos dali, e os que arribavam breve submergiam no rio da história desse lugar.
Agora talvez poucos saibam o que é uma cidade, onde o saber deu lugar à ignorância, ao consumo e à carestia.
Por isso eu digo que sou daqui e dali, sou do meu lado, um lado sem lados, um como que buraco de mim, grave, fundo.
Não sou de nenhum lado, sou antes, de mim, o esqueleto, a estrutura, folha desfolhada onde se vislumbram memórias e resíduos.
Ser-se, existir, é uma estranha complexidade simples, uma cosmologia, uma prisão livre ou, quem sabe (e eu só tenho dúvidas por certezas) uma liberdade aprisionada, espécie de furacão agrilhoado. Chego-  me para um dos lados de nenhum e deixo que acreditem.
Mergulho na profundidade do silêncio para perceber qual dos lados das facetas é, ainda que saiba que nada saberei, porque o saber é uma transcendência que não se compadece com as ilusões do estar ou do ser, isto é, do tempo e do lugar. É aquilo que se nos sobrepõe, inominável. Assim é o lugar de onde sou, sem lados, um pé num continente e o outro pé noutro, tornam-me, quiçá, de lado nenhum.

1auto-china: designação tradicionalmente macaense da ópera chinesa 

A DIMINUIÇÃO DO QI, O EMPOBRECIMENTO DA LINGUAGEM E A RUÍNA DO PENSAMENTO.

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