Wednesday, October 10, 2018

A TRANSCENDENTE ANCESTRALIDADE DO FOGO

E Jeová formou o homem do pó do solo, moldou-o, e soprando nele o fôlego de vida,o tornou um ser.(1)
Livro do Génesis, Antigo Testamento.
(1) Recordemo-nos que Jeová aparece a Moshe (Moisés) sob a forma de um arbusto ardendo.


Ao golpearem as suas forjas, os ferreiros imitam o gesto primordial do deus forte; são, na verdade, As suas extensões, toda a mitologia tecida em torno da fertilidade agrária, da metalurgia e do trabalho é, porém, de origem relativamente recente. Proveniente de data mais tardia do que a olaria e agricultura, a metalurgia encontra-se no quadro de um universo espiritual onde o deus celeste, que ainda estava presente nas fases etnológicas da recolecção de alimentos e caça de animais de pequeno porte, é finalmente banido pelo Deus forte, o Macho fertilizador, esposo da Grande Mãe Terrestre.

Mircea Eliade • A Forja e o Cadinho

O Arquétipo e a Essência
Quando, há milhares de anos o ferro de meteoritos começou a ser usado, sendo trabalhado com sílex, era considerado uma dádiva dos deuses, face à sua origem celestial.
Não se sabia ainda quanto tempo duraria a Idade do Ferro, unindo milénios de história até aos nossos dias, provavelmente de um modo tão inconsciente que a maioria desconhece o período pelo qual aquela se estende.
A emergência da manipulação do fogo na história da humanidade trouxe uma lenta, mas consistente, percepção da sua essência.
À medida que as artes do fogo se desenvolveram, nomeadamente a primeira cerâmica, tornou-se mais intensa a ligação com o fogo graças ao processo de descoberta, no útero da Mãe-Terra e a ousadia na extracção de minérios e manipulação de uma liga não ferrosa composta de cobre e zinco, designada por bronze.

As propriedades sagradas de transmutação do fogo eram já conhecidas e mesmo adoradas em muitas culturas, à medida que se descobriam minérios de ferro. Ainda hoje o fogo é, em diversas culturas o modo como se transferem símbolos de bens materiais para outra dimensão.

Os ferreiros, manipuladores do imateral fogo e do ferro, passaram a ser investidos de identidades sagradas pois pertenciam ao grupo restrito daqueles que ousavam desafiar as tremendas forças da Natureza vindas das entranhas da Mãe Terra, combinando-as com os poderes de transmutação do fogo aprendidos nos fornos dos oleiros.
Do trabalho do ferro surgiram duas ramificações: a das alfaias agrícolas e a das armas de gume. Se, por seu lado, as alfaias agrícolas conheceram um desenvolvimento bastante anónimo, a forma principal das armas de gume, a espada, transformou-se num arquétipo histórico, comum a todas as culturas.
O momento em que a futurea espada é idêntica ao magma da Terra
No entanto, poucos saberiam à época, quão próximo se encontravam da essência da verdade quando aos ferreiros foi conferido um estatuto especial – algumas culturas exigindo que o ferreiro vivesse à parte da comunidade e não fosse circuncidado de modo a, assim, poder possuir a força feminina e a força masculina – que lhe permitia lidar com esses poderosos elementos. Na verdade, o forjar do ferro não é mais do que uma recriação do âmago da Terra, uma gigantesca fornalha de ferro derretido cheio de propriedades magnéticas que asseguram, ao mesmo tempo, a gravidade e os campos magnéticos que protegem o planeta. 

Estas culturas arcaicas estavam, de facto, a recorrer a linguagens diferentes para chegar à mesma verdade: as forças que sustentam a vida. Por outras palavras, de cada vez que um ferreiro forja uma espada está a recriar, na sua forja, a essência da Terra, oculta sob a crosta e o manto. Ao fazê-lo, mesmo sem o saber, lida com a transcendência.
O que espanta é que, no século XXI existamos assentes em outras realidades, seguramente mais banais.

O fogo, os elementos e o aço
Geralmente, considera-se que o ferro começou a ser usado na China por volta do século XIII A.C., de acordo com algumas escavações em Xingjian, onde foram descobertos numerosos artefactos de ferro em túmulos, submetidos a datação através de carbono 14. No entanto, foram descobertas provas da existência de ferro meteórico forjado em gumes apostos a machados de bronze originários dos períodos Shang e Zhou.
No entanto examinemos, por um momento, os cinco elementos tais como foram formulados pela civilização chinesa: fogo, madeira, metal, água e terra, ao mesmo tempo que mantemos presentes os principais elementos da força magnética, os pólos positivo e negativo.
A descoberta do aço encarna em si a essência de todos os cinco elementos: o fogo enquanto agente de transmutação, a madeira enquanto fornecedora de fogo, o metal enquanto elemento a ser transformado, a água enquanto agente alquímico final do aço e a terra enquanto fonte-útero.

Só quem já admirou o aço a ser aquecido ao rubro durante a noite, revelando os seus segredos a olhos conhecedores, poderá compreender o incrível processo de transformação que o metal incandescente sofre ao ser imerso em água, encontro dos opostos para um nascimento.

Toda a estrutura molecular se altera sob o choque do Yang incandescente entrando na receptiva água Yin. De novo é a criação recreada pela fusão das partes numa totalidade que é agora denominada aço. Yang e Yin, ou pólos positivos e negativos que geram energia magnética, fundem-se num metal novo cuja aparência, à medida que arrefece lentamente, pode comparar-se com as múltiplas aderências orgânicas com as quais um recém-nascido vem ao mundo.
Nesse sentido, o ferreiro é tanto um procriador como um re-encenador, sendo a seu modo, um alquimista que, talvez o único de entre todos, conseguirá compreender o acto da criação através da manipulação das forças primordiais do Masculino e do Feminino.

A espada, o símbolo e preconceitos 

Não há dúvida de que a espada de aço foi uma das armas mais duradouras da história da humanidade, um símbolo de poder, de destruição, mas também dos valores mais fundamentais e das mais temidas manifestações da humanidade, tais como a honra, coragem, lealdade e justiça, por um lado, e, por outro, da crueldade, da traição e da cobardia.
Desta inevitável dualidade, porém, o arquétipo que emerge é o de espadas que encarnam míticas atribuições de poder, como na lenda celta de Manaan, da Excalibur do Rei Artur, da Espada de Dâmocles, da Espada Flamejante do Arcanjo São Gabriel, da Espada Taoista de Captura de Demónios e, por último mas não de menor relevância, a Espada que a Estátua da Justiça segura.



Hoje em dia, as espadas são objectos cerimoniais e anacrónicos, parte de um passado longínquo, mas nem por isso destituídas de valor intrínseco, simbólico e transcendente. 
Para além da elaborada tecnologia de que possa estar imbuída, tenhamos presente de que o termo ‘tecnologia’ provém da palavra grega techne, que não se refere somente às actividades e capacidades dos artífices, como também às artes da mente e às artes .
Como tal, à medida que o mundo se altera, o conceito tradicional de arte enquanto “imutável, nacionalista, superior ou inferior e estritamente definido” dá lugar a uma perspectiva dinâmica e em alargamento constante pela qual o conceito de arte regressa à sua abertura conceptual original e, como sempre, sob uma nova visão.
Vivemos num tempo da história da humanidade em que não pode haver mais lugar a preconceitos nem a divisões das artes em superiores e inferiores.
Assim, actualmente, dever-se-ia olhar a espada como um objecto de arte, tal como está presente em museus por todo o mundo, frequentados por 80 milhões de visitantes. A espada não perdeu a sua transcendência, no mundo onde tudo o que se desconhece deixa de ter relevância.
Perdem todos, perde a humanidade que olha para quase tudo superficialmente, conduzida a interessar-se de sobremaneira pelo consumo.

A DIMINUIÇÃO DO QI, O EMPOBRECIMENTO DA LINGUAGEM E A RUÍNA DO PENSAMENTO.

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