Saturday, March 16, 2019

CRIATIVIDADE E LUGAR


Criar é um acto de descodificação e de antecipação de cenários e visões do desenvolvimento das heranças culturais inerentes àquele que cria. Não é a esse acto, de todo indiferente, o peso da cultura dentro da qual se opera o acto de criar, porque é nas tradições religiosas, éticas e morais, ou pela sua negação, que assenta este processo.

A Ocidente, está o acto criativo consagrado, desde o Princípio, no Verbo. Tão só!

Assim, Criação e acto criativo, como que se confundem, na tradição judaico-cristã. Este procurando emular aquela, proveniente de Jeová, de Javé, de Deus. É, mais que simbolicamente, a reconstituição de um acto divino humanizante, porquanto, ao Sétimo Dia, o Criador descansa. Assim está nas escrituras. O Deus de Abraão, de Jacob e de Moisés repousa do esforço de criar, depois de também ter criado Adão, segundo está escrito, à sua imagem e semelhança.

É este premeditado conluio no descanso, na humanização do sagrado judaico-cristão que, por sua vez, sacraliza no homem o esforço deste em emular a criação, pelas vias que sabe. É assim que nesta plataforma deificante tem lugar o acto de tornar presente o futuro, característica essencial da criatividade humana. O criador transforma-se no sacerdote que ao longo dos séculos tem vindo a repetir a consagração da referência máxima: "tomai e comei. Sempre que o fizerdes, fazei-o em memória de mim", sem que, todavia, lhe esteja inerente a mais bela conversa cristã entre o homem e o Criador: Pai nosso…

A Oriente, a relação com o sentido da divindade transmuta-se para um nível cósmico, remetendo o homem, enquanto entidade criadora, para uma dimensão entre o Todo e o Nada, onde a divindade está, no seu essencial, removida.

O acto de criar advém então, não na ascensão ao divino mas na perceptibilidade da essência, na nulificação do ego enquanto entidade ciente e física, convivendo com uma realidade feita de aparências, de ilusões que tendem a toldar, camada sobre camada, o âmago da consciência pura, despida de interferências conducentes ao conhecimento mais depurado de níveis de realidade diferentes.

Como já se inferiu, não é indiferente ao acto de criar a geografia. Preside esta ao próprio nascimento do criativo, determinando-lhe cenário, circunstância e herança cultural, definindo-lhe raízes de onde deverá fazer crescer outras, subordinando-o a um contexto de onde também deverá saír, para depois, regressar prodigamente.

Contudo, não deixo de me questionar sobre o destino, a opção das sociedades mestiças.

Toda esta reflexão é-me suscitada pela revolução inovadora da Sociedade da Informação, globalizante para uns, modernidade para outros, porventura mais receosos de se diluírem em palavras mais comuns.
Aos criativos não importará em demasia a semântica como fim, apenas como meio. Importa contudo notar que a mais presente das actualidades é produto do somatório de todos os passados da Humanidade. Será pois dos arquétipos e dos signos que o criativo recorre para estabelecer a sua linguagem específica. 

Porém, mais do que a virtualidade da Sociedade de Informação, mais do que as chamadas auto-estradas da informação, é a contemplação da linguagem matemática do ciberespaço que suscita a eclosão de uma perplexidade perante um novo Universo criado pelo homem.

Ao contrário de Deus ou da divindade, o homem criou a mais próxima e mais imaterial das realidades, ou, porque não, a mais distantemente próxima ilusão de realidade material.

Ao criativo, perante as tecnologias, depara-se-lhe um novo campo de intervenção, não apenas no âmbito da linguagem virtual, mas mesmo na recuperação e actualização de outras formas mais tradicionais de expressão. Ou dizendo de outra forma, além de novas ordens económica, jurídica, e mesmo da governação, a era do código binário da sociedade de informação anuncia alternativas de criação artística sobre suportes imateriais, mas nem por isso menos democratizados que a fotografia, a xilogravura, a litografia, a gravura sobre metal ou a serigrafia.

Contudo, e dentro do acesso a outras realidades que Macau proporciona, a Sociedade da Informação propõe um enorme desafio a cerca de um quinto da população. Com efeito sabe-se que a maioria da população chinesa não fala senão a sua língua, ainda que seja patente o surto de desenvolvimento que ocorre há quase duas décadas na Mãe-China.

Contudo numa ética que se deseja global, não podem ocorrer exclusões decorrentes de um massivo predomínio de uma língua de comunicação.

Porém, não podendo o desenvolvimento tecnológico ser sustido pela vida própria que adquiriu, a contemporaneidade da China ainda a mantém numa situação de exclusão linguística na sociedade de informação.

Ao surto desenvolvimentista que sopra na China há que adicionar o seu acesso de pleno direito a esta nova versão de sociedade das nações e de cidadanias virtuais. Algumas razões de peso levam à expressão deste desejo que é um enorme desafio há pluralização linguística da China.

Constituindo a exclusão uma forma de discriminação, não se afigura viável que a China e a sua cultura possam ou devam estar representadas por sinólogos de outros países. Isto é, na sociedade de informação, o acesso de pleno direito é uma condição de autenticidade de conteúdos e de legibilidade culltural.

Quiseram a História e a Economia, que o Ocidente tivesse uma prevalência de disseminação cultural sobre o resto do mundo. Mas ao falar-se da China, fala-se igualmente da Coreia e do Japão, portadores de uma escrita que nenhuma romanização trará solução.

Assim existe um dilema que à partida exclui do acesso, usufruto e troca de ideias, cerca de um quinto da população mundial, com as confirmadoras excepções às regras, nas élites linguísticas destes países.

Por maioria de conteúdos e de razão, falhado há muito o esperanto, o inglês é a inevitável língua de comunicação na sociedade de informação. E estou certo que milhões de pessoas têm para com a China e os chineses uma enorme expectativa relativamente ao seu desempenho e revelação cultural no espaço virtual. Haverá certamente uma enorme curiosidade sobre o modo como tanto de Oriente interpreta o mundo de hoje.

Põe-se assim ao multi-milenar Império do Meio a perspectiva e o desafio de novamente se reinventar numa perspectiva de desenvolvimento integrado, para que, com a proverbial sabedoria, possa teorizar sobre o espaço virtual e, sobre criação e criativos, emitir opiniões e publicar estudos que permitam ao resto da humanidade virtualizada, aceder a outras visões sobre o acto criativo.

ESCRITO NO SÉCULO XX

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