Wednesday, October 7, 2020

CÁN JUÉ

 

O negro recorda-me a folha branca, a parede caiada, o estuque do mural por encetar, a tela virgem. Porque será que o luto anoitece a ocidente e branqueia a oriente?

Tudo tem uma razão, mesmo que esta se não descortine, até que a caneta rasgue o branco e a palavra comece, dando sentido não só à ideia mas também ao uso do branco.

O mesmo se passa ao inverso, com a ardósia, pois que nada é singular se o seu todo não contiver o oposto.

E neste convívio de opostos, ocidente e oriente, existindo na geografia de um espaço onde a realidade dos desejos se ficciona na vontade dos mesmos, os sons ocupam a

vacatura dos silêncios quando a porta dos sentidos se abre e nos damos à música, que se enche de negro e silêncio, porque quando se ouve, é preciso que se faça escuro para que a alvura dos sons suba à ribalta.

Zhou Yun bateu-me à porta das palavras e entrou-me com o olhar brilhando:

– Por agora não vou estudar violino.

Sentou-se com à-vontade perante a minha já habitual estupefacção, cheirando as flores brancas de gengibre que coroavam um cubo de porcelana, jogo entre a geometria e o naturalismo. Fechou os olhos e, abrindo as mãos, revelou um pequeno embrulho quadrado que, ao inverso da velha sapeca, continha nele o céu na forma de um disco.

– Posso pôr? indagou ansiosa. Assenti, vendo como ela me escondia o conteúdo. Seria dela? Mas porque estaria vestida de quase negro, reparara eu então, olhando as costas da blusa de riscas pretas e brancas, entremeadas de florzinhas.

Sentou-se com um olhar de revés, maroto. Depois, as mãos juntas, os polegares nos lábios, o olhar fixo aí no nada da parede branca, onde os sons anunciam a erupção iminente.

Um breve silêncio e o tanger de umas cordas, graves e agudas, tocadas com tal mestria que os sons se acumulavam aos precedentes, como lágrimas de um secreto pranto que se detém numa pausa breve.

Ergueu-se então uma voz, daquelas que o são por vontade de deus e, em silêncio, ouvimos o esvoaçar de um timbre de raça, lançando às paredes volutas de sons, convocando histórias de fenícios e de árabes, almuadens chamando os fiéis à oração a Meca e a Alá, préstito de choros, de destroços, de conquistas e suplícios, e memórias de uma sé edificada por sobre uma mesquita, pedras fundindo-se nas ruas e vielas de uma moirama que, de cercada, se abriu para a mouraria, morada de palavras onde o destino se diz fado, entremeado com a côdea da pobreza disfarçada por fogareiros ardendo brasas de onde fumegam sardinhas.

A voz tornava-se irrecusavelmente sublime, descalça pela verdura, tremente de segura, estranha forma de canto que se não aprende, apenas se sente, e nesse sentir da

intraduzível saudade se clareia em trinados irrepetíveis, que esta é uma raça feita de raças, de poetas mortos de fome ou escrevendo ridículas cartas de amor.

Olhei finalmente Zhou Yun. As mãos permaneciam em prece, os olhos vertendo lágrimas, doces regatos escorrendo, fixos algures onde a voz toca para além do ouvido e faz o homem ser mais homem, porque o homem chora e ainda bem, que o pranto lava a alma, que apenas o corpo não chega.

A voz calou-se por fim, o silêncio imperando de novo, vazio e só. Zhou Yun fungava discretamente. As lágrimas limpava-as com as costas das mãos, olhava-me carregada de mágoa, os lábios tremendo, o ar sorvido em soluços discretos.

Dei-lhe o lenço branco que uso. Agradeceu e agarrou-se ao branco com as duas mãos.

Olhou o algodão tecido, abanou o lenço.

– A música é uma nação de todas as raças, murmurou olhando o lenço. Por isso a cultura é o exercício da paz, por isso a paz é branca como o nosso luto, porque é a morte da imperfeição.

Aguardei que ela recuperasse, pesei as palavras, a pergunta era aparentemente banal:

– Não sabia que gostava de fado. Ela olhou-me, voltou-lhe ao semblante uma expressão de tristeza infinita.

– Cán Jué, murmurou. Sentimentos. Vocês têm uma forma de cantar poesia. O fado, esta senhora... Acendi um cigarro em busca de palavras:

– É uma forma de catarse. Para muitos o fado é a aceitação do destino. Tem uma história que não é tão linear assim, quase se perde e se encontra na história do país. Cada povo tem uma forma de se confessar – disse, olhando as paredes alvas - o importante é que se

confesse.

Zhou Yun esboçou um sorriso:

– Nós confessamo-nos no retiro de uma montanha. Vocês cantam a tristeza.

Olhei-a de novo.

– É uma transfiguração, é uma herança, como a vossa ópera convoca fantasmas e histórias antigas. O silêncio percorreu o tempo de um sopro de fumo do cigarro.

– Mas eu gosto muito desta senhora...

– Amália, completei.

– Isso, Amá-la ! repetiu sorrindo.

Estranhamente, quando se foi embora, e guardei o lenço, senti algo dentro. Era um brinco em filigrana, da forma de uma lágrima.


© António Conceição Júnior
Conversas do Chá e do Café 2011

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