Saturday, November 3, 2018

TIAN SHI

Inventaram os homens o tempo, a partir dos dias e das noites. Fizeram bem, afinal, ainda que, ao fazê-lo, se tenham esquecido de pensar na sua própria finitude.
O que temos ou nos resta são palavras, pobre riqueza de humanos, ramagem dos sentidos, sentimentos erguidos à luz de uma qualquer heráldica do dizer.
Os passos encaminham descompassadamente o trinado das ideias ao sabor da areia que se escoa pelos interstícios dos dedos, tempo escoado em ilusórios registos, dissolução necessária para a reconstrução do templo que somos.
Huó xing 彗星 (cometa) iria passar próximo, como há sessenta mil anos, diziam os astrónomos, e todos foram ver o ponto vermelho. Eu fiquei em casa, mais por achar que não deveria embasbacar-me com estas questões do tempo.
No dia seguinte saí e, a matar saudades, dirigi-me a um jardim, velho conhecido, junto ao qual vivi nove anos, ouvindo, de manhã, a  conversa dos velhos e os pássaros a cantar, sombreados pela copa de centenárias árvores.
Nada mudara, nem mesmo as gaiolas. Olhei as raízes suspensas como lianas, subi a suave escadaria que dava para a gruta que não era, e fui- me sentar no terreiro ao lado, olhando os jogadores de xadrez e o rio que daí se avistava, silencioso e vago, cintilando pequenos sóis.
Ao lado estava um velho de barbas longas e lisas, fumando um cachimbo de água, os olhos perdidos no infinito, o cabelo rente ao crânio.
Olhámo-nos e sorriu-me, com a boca oculta no fumo do tabaco amarelo.
 Olá mano (1)! – saudou-me, naquele modo de dizer tipicamente de Macau.
 Ni hau! (como está) – retorqui sorrindo, por detrás da barba, também ela branqueando. Havia aí uma certa cumplicidade, como se tivéssemos a mesma idade, e o facto de falarmos um dialecto comum.
O ancião apresentou-se como sendo Shi  Wei  Ming.
Tinha  chegado  a  Macau  ainda  criança, e fitava-me enquanto a conversa se estabelecia. Sentia que os seus olhos me investigavam a idade, e eu adivinhava como conjugaria ele a falta de rugas com a cor da barba, código díspar do seu, onde a barba é adorno de ancião. Cuidadosamente evitou abordar o assunto. Tomou-me como seu par na idade, e eu senti-me honrado.
   Já foi ver o huó xing?
Olhei-o e reparei que não trazia relógio.
  Não – respondi. – Sei que está próximo, como só há sessenta mil anos, e isso basta-me.
Shi Wei Ming fitou-me, os olhos cerraram-se-lhe. Soltou outra baforada de fumo do cachimbo de bambu, a água gorgolejando, e de pronto iniciou um discurso que me surpreendeu:
  Desde a Idade Média que o Ocidente mantém duas visões do tempo: uma, escatológica, por isso teológica, e outra física, científica. A primeira advém do Cristianismo e da compreensão do tempo através da relação do homem com Deus, e da finitude desse tempo por via do juízo final. Está aqui o homem dependente do tempo divino, da data do juízo final, nunca divulgada. A visão científica do tempo exclui a existência humana da sua medida,   é acção objectiva e desapaixonada que meramente mede em métrica humana uma dimensão tornada física.
Deixei de perceber a língua em que falava, apenas me apercebia que o entendia.
Até  hoje, porém,  a  leitura  sobre  a  filosofia chinesa tem-se subordinado, pelo menos aqui na China, à perspectiva conceptual da metafísica tradicional do ocidente. Pouca importância parece dar-se à interpretação filosófica e histórica, numa perspectiva inteiramente chinesa do tempo.
  Antes da consolidação do Império de Qin Shi Huang, sobretudo no período anterior aos Estados Guerreiros, encontrar-se-á uma dimensão do tempo que apenas tem paralelo na construção do eidos grego.
Interrompeu-se para nova cachimbada, o tabaco finando-se.
  O tempo aludido na China antiga refere-se ao Tien Shi, o tempo celestial. Os milénios dizem-nos que o Mando da governação Celestial existe apenas no tempo, em subtil matriz. O I Qing (Livro das Transmutações) anuncia, por seu lado, como o céu e a terra se tornam plenos e vazios com o tempo. Não é o tempo das quatro estações nem o do calendário dos Xia ou dos Zhou. O Tao te Qing anuncia: “Havia algo de indeterminado antes do nascimento do Universo. Essa qualquer coisa voga sem cessar. Com um nome deve ser a Mãe do Universo, sem nome será o antepassado dos deuses. Como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao” . (2)
O próprio tempo das  quatro estações chinesas é lunar, tem outra métrica. Liga-se intimamente com as transmutações do Yin e do Yang, dos oito trigramas, e dos cinco elementos, madeira, fogo, terra, metal e água. A mensurabilidade das manifestações do tempo não está sequer confinada ao que Zhou Yan disse sobre as rotações dos Cinco Poderes que reclama que a ascensão e queda das dinastias corresponde à ordenada sequência dos cinco elementos.
A lição prosseguia em tom coloquial, humilde, às vezes arrastado, os olhos cerrados, como se recitasse um Sutra.
  É contudo o livro das transmutações, o I Qing, aquele que exerce um conceito mais completo. Inicialmente os oito trigramas e os 64 hexagramas representam as transmutações. Os componentes mais simples são o Yin e o Yang, o lado mais escuro da montanha ou nebulosidade, e o lado mais radioso da montanha, ou uma abertura. Contudo, não simbolizam primordialmente dois tipos de entidades ou dois elementos materiais básicos do mundo. Os caracteres anunciam que ambos têm algo a ver com o sol, isto é, as faces de uma  montanha olhando o sol ou estando de costas para este. Por isso o livro diz: Yang e Yin comparam-se ao sol e à lua. Para os antigos o sol ou dia, e a lua  ou noite, são a origem do tempo que diz respeito à vida humana. Yin-Yang no I Qing significam primordialmente o encontro e interacção dos dois lados que tornam o tempo e a vida possível.
Fitou-me entre as pálpebras semicerradas, arrancando da garganta uma tosse que vinha do fundo.
Reconstituí de novo a citação que mais gostara: "sem nome, será o antepassado dos deuses".
Por breves momentos recuei ao nascer dos anos oitenta, quando na Sé Velha de Coimbra, a um canto, vi escrito: "deus, por modéstia, não existe".
E desses vinte anos, entre a juventude e a idade do meio, julguei perceber o quanto tudo é tão só um todo, mesmo quando nomeado inominável.
Shi Wei Ming limpava agora o rosto com a camisola, magro, quase esquálido. Remetera-se ao silêncio outra vez. Volveu o olhar para mim.
   Esta noite – disse-lhe – irei olhar a lua.
E prontamente recoloquei os óculos escuros e me afastei pensativo, fugindo à fulgurância do sol.
Pela primeira vez, desde há muito, ouvi uma cigarra cantar, escondida numa das centenárias copas de árvore, certo de que o divino nem sempre se manifesta como esperamos.


(1) Leia-se máno, forma cortês com que os chineses de Macau tratavam os amigos portugueses.
(2)Tao, Via, Caminho.

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