Inventaram os homens o tempo, a partir dos dias e das
noites. Fizeram bem, afinal, ainda que, ao fazê-lo, se tenham esquecido de
pensar na sua própria finitude.
O que temos ou nos resta são palavras, pobre riqueza de
humanos, ramagem dos sentidos, sentimentos erguidos à luz de uma qualquer
heráldica do dizer.
Os passos encaminham descompassadamente o trinado das
ideias ao sabor da areia que se escoa pelos interstícios dos dedos, tempo
escoado em ilusórios registos, dissolução necessária para a reconstrução do
templo que somos.
Huó xing 彗星 (cometa) iria passar próximo, como há sessenta
mil anos, diziam os astrónomos, e todos foram ver o ponto vermelho. Eu fiquei
em casa, mais por achar que não deveria embasbacar-me com estas questões do
tempo.
No dia seguinte saí e, a matar saudades, dirigi-me a um
jardim, velho conhecido, junto ao qual vivi nove anos, ouvindo, de manhã,
a conversa dos velhos e os pássaros a cantar, sombreados pela copa
de centenárias árvores.
Nada mudara, nem mesmo as gaiolas. Olhei as raízes suspensas como lianas, subi a suave escadaria
que dava para a gruta que não era, e fui- me sentar no terreiro ao lado,
olhando os jogadores de xadrez e o rio que daí se avistava, silencioso e vago,
cintilando pequenos sóis.
Ao lado estava um velho de barbas longas e lisas, fumando
um cachimbo de água, os olhos perdidos no infinito, o cabelo rente ao crânio.
Olhámo-nos e sorriu-me, com a boca oculta no fumo do
tabaco amarelo.
– Olá
mano (1)! – saudou-me, naquele modo de dizer tipicamente de Macau.
– Ni
hau! (como está) – retorqui sorrindo, por detrás da barba, também ela branqueando.
Havia aí uma certa cumplicidade, como se tivéssemos a mesma idade, e o facto de
falarmos um dialecto comum.
O ancião apresentou-se como sendo Shi Wei
Ming.
Tinha chegado a
Macau ainda criança, e fitava-me enquanto a conversa se estabelecia. Sentia que os
seus olhos me investigavam a idade, e eu adivinhava como conjugaria ele a falta
de rugas com a cor da barba, código díspar do seu, onde a barba é adorno de
ancião. Cuidadosamente evitou abordar o assunto. Tomou-me como seu par na
idade, e eu senti-me honrado.
– Já foi
ver o huó xing?
Olhei-o e reparei que não trazia relógio.
– Não –
respondi. – Sei que está próximo, como só há sessenta mil anos, e isso basta-me.
Shi Wei Ming fitou-me, os olhos cerraram-se-lhe. Soltou
outra baforada de fumo do cachimbo de bambu, a água gorgolejando, e de pronto iniciou um
discurso que me surpreendeu:
– Desde
a Idade Média que o Ocidente mantém duas visões do tempo: uma, escatológica,
por isso teológica, e outra física, científica. A primeira advém do Cristianismo
e da compreensão do tempo através da relação do homem com Deus, e da finitude
desse tempo por via do juízo final. Está aqui o homem dependente do tempo
divino, da data do juízo final, nunca divulgada. A visão científica do tempo
exclui a existência humana da sua medida,
é acção objectiva e desapaixonada que meramente mede em métrica humana
uma dimensão tornada física.
Deixei de perceber a língua em que falava, apenas me
apercebia que o entendia.
Até hoje, porém, a
leitura sobre a
filosofia chinesa tem-se subordinado, pelo menos aqui na China, à perspectiva
conceptual da metafísica tradicional do ocidente. Pouca importância parece dar-se à interpretação filosófica e histórica, numa perspectiva inteiramente chinesa do tempo.
– Antes
da consolidação do Império de Qin Shi Huang, sobretudo no período anterior aos
Estados Guerreiros, encontrar-se-á uma dimensão do tempo que apenas tem
paralelo na construção do eidos grego.
Interrompeu-se para nova cachimbada, o tabaco finando-se.
– O
tempo aludido na China antiga refere-se ao Tien Shi, o tempo celestial. Os milénios dizem-nos que o Mando da governação Celestial existe
apenas no tempo, em subtil matriz. O I Qing (Livro das Transmutações) anuncia, por seu lado, como o céu e
a terra se tornam plenos e vazios com o tempo. Não é o tempo das quatro
estações nem o do calendário dos Xia ou dos Zhou. O Tao te Qing anuncia: “Havia
algo de indeterminado antes do nascimento do Universo. Essa qualquer coisa voga
sem cessar. Com um nome deve ser a Mãe do Universo, sem nome será o antepassado
dos deuses. Como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao” . (2)
O próprio tempo das
quatro estações chinesas é lunar,
tem outra métrica. Liga-se intimamente com as transmutações do Yin e do Yang,
dos oito trigramas, e dos cinco elementos, madeira, fogo, terra, metal e água.
A mensurabilidade das manifestações do tempo não está sequer confinada ao que
Zhou Yan disse sobre as rotações dos Cinco Poderes que reclama que a ascensão e
queda das dinastias corresponde à ordenada sequência dos cinco elementos.
A lição prosseguia em tom coloquial, humilde, às vezes
arrastado, os olhos cerrados, como se recitasse um Sutra.
– É
contudo o livro das transmutações, o I Qing, aquele que exerce um conceito mais
completo. Inicialmente os oito trigramas e os 64 hexagramas representam as
transmutações. Os componentes mais simples são o Yin e o Yang, o lado mais
escuro da montanha ou nebulosidade, e o lado mais radioso da montanha, ou uma
abertura. Contudo, não simbolizam primordialmente dois tipos de entidades ou
dois elementos materiais básicos do mundo. Os caracteres anunciam que ambos têm
algo a ver com o sol, isto é, as faces de uma
montanha olhando o sol ou estando de costas para este. Por isso o livro
diz: Yang e Yin comparam-se ao sol e à lua. Para os antigos o sol ou dia, e a
lua ou noite, são a origem do tempo que
diz respeito à vida humana. Yin-Yang no I Qing significam
primordialmente o encontro e interacção dos dois lados que tornam o tempo e a
vida possível.
Fitou-me entre as pálpebras semicerradas, arrancando da
garganta uma tosse que vinha do fundo.
Reconstituí de novo a citação que mais gostara: "sem
nome, será o antepassado dos deuses".
Por breves momentos recuei ao nascer dos anos oitenta,
quando na Sé Velha de Coimbra, a um canto, vi escrito: "deus, por modéstia, não
existe".
E desses vinte anos, entre a juventude e a idade do meio,
julguei perceber o quanto tudo é tão só um todo, mesmo quando nomeado
inominável.
Shi Wei Ming limpava agora o rosto com a camisola, magro,
quase esquálido. Remetera-se ao silêncio outra vez. Volveu o olhar para mim.
– Esta
noite – disse-lhe – irei olhar a lua.
E prontamente recoloquei os óculos escuros e me afastei
pensativo, fugindo à fulgurância do sol.
Pela primeira vez, desde há muito, ouvi uma cigarra cantar,
escondida numa das centenárias copas de árvore, certo de que o divino nem
sempre se manifesta como esperamos.
(1) Leia-se máno, forma cortês com que os chineses de Macau tratavam os amigos portugueses.
(2)Tao, Via, Caminho.
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